sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

o Realismo no estúdio do pintor

Jean-Desiré-Gustave Courbet nasceu em Ornans, França, em 10 de junho de 1819, numa família de abastados fazendeiros politicamente socialistas. Foi para Paris estudar Direito, mas acabou dedicando-se à pintura, na qual iniciou copiando os grandes mestres espanhóis do século XVII, principalmente Hals e Velázquez, no museu do Louvre. Segundo CUMMING, ele foi o primeiro artista bem-sucedido a se opor ao sistema: “sua arte floresceu em oposição ao poderoso regime político e artístico que dominava a França na época”. Foi um defensor do Realismo, nova estética segundo a qual a arte devia tratar de fatos comuns, sem comentários morais nem idealizações (p. 74, Para entender os grandes pintores).

Segundo JANSON, Courbet começou como um romântico neobarroco, mas, influenciado pelos levantes revolucionários que varriam a Europa, chegou à conclusão de que a ênfase romântica sobre o sentimento e a imaginação era uma fuga à realidade da época – o artista moderno devia confiar em sua experiencia direta; devia ser um realista

No ano de 1849, pintou “Os Quebradores de Pedra”, considerada a primeira obra a concretizar plenamente o realismo.  

No começo de sua carreira pintou diversos auto-retratos, dentre eles “Auto-retrato com um cão”, de 1842 (obra já considerada realista), o “Enterro em Ornans”, de 1849 (um retrato da vida campestre que escandalizou pelo tema e pelo realismo) e “O estúdio do pintor”, de 1855 - um auto-retrato no qual faz uma crítica à sociedade da época, representando, junto de si, seus amigos intelectuais (personagens reais do cenário cultural da época) e uma mulher nua que, segundo estudiosos, representaria a verdade.

No mesmo ano, 1855, seus quadros foram recusados pela Exposição Universal, em Paris, devido aos seus temas demasiadamente prosaicos. Courbet reagiu construiundo um pavilhão perto do Salão onde expôs 44 obras que chamou de “realistas” – um marco desse movimento. Os organizadores aceitaram apenas onze de seus quadros, recusando, entre outras telas, “O estúdio do pintor” - quadro que mostra o atelier de Courbet em Paris, com aproximadamente seis metros de largura e apresenta o próprio artista no centro da composição pintando uma paisagem enquanto é “assistido” por diversas pessoas (dentre elas personagens reais). Ao seu lado está a mulher nua, que evidentemente não serve de modelo já que ele está pintando uma paisagem e que para os historiadores seria a representação a verdade.

Courbet registrou suas reflexões enquanto o pintava, por isso sabe-se que à direita do pintor estão personagens reais, amigos do artista e que à esquerda estão aqueles que segundo o próprio artista “florescem com a morte”: não só seus inimigos e as coisas que ele combatia, mas também os pobres, destituídos e perdedores na vida.

A obra vem com um estranho subtítulo: “Alegoria Real, Histórica, Moral e Física que resume um período de sete anos da minha vida artística”. Nesse trabalho, Courbet realiza um novo tipo de alegoria, uma “alegoria realista”, uma síntese simbólica da sociedade de sua época, com todas as camadas sociais representadas.

No canto esquerdo da composição, o pintor representa um crânio (símbolo arquetípico da morte) sobre um jornal – o que seria um comentário sobre os críticos, que, no século XIX, influenciavam fortemente a formação da opinião popular e artística. Também à esquerda, estão representados um chinês, um judeu, um veterano da Revolução Francesa, um operário, um irlandês e um caçador clandestino, que representariam os perdedores explorados pelos amigos de Courbet. Talvez essas figuras tenham também papéis alegóricos, Courbet não os definiu com precisão. Em primeiro plano, está Napoleão III disfarçado com roupas de caçador - seu regime, duro e repressor, desencadeou uma revolta popular da qual Courbet foi opositor. Na frente de Napoleão III, há, abandonado no chão, um chapéu, uma capa com uma adaga e um violão – objetos típicos do artista romântico – que podem representar o abandono da arte romântica, vista por Courbet como uma arte ultrapassada. Mais ao centro, há uma figura crucificada que, segundo CUMMING, seria um boneco de madeira articulado, em tamanho natural, que os artistas convencionais costumavam copiar. Isso simbolizaria a arte acadêmica, que Courbet rejeitava. Essa figura está na sombra projetada pelo novo tipo de arte que vemos no cavalete ao centro do quadro: uma paisagem realista que representaria a terra natal do artista.

A corrente predominante na arte ainda não considerava a paisagem um tema digno de um pintor sério – e Coubet parece estar se opondo a esta opinião, questionando as idéias vigentes no sistema das artes. Em frente à paisagem, há uma criança, um menino aparentemente pobre e sem instrução, que representaria a inocência. Courbet talvez esteja dizendo que prefere a visão direta e honesta dessa criança aos falsos valores da opinião culta e instruída. Segundo CUMMING, a presença da criança também é um pretexto para o artista desviar-se por um momento de seu trabalho e exibir o seu perfil “assírio”, de que muito se orgulhava – e isto também serve para lhe identificar como protagonista da cena.          

A mulher nua, junto ao artista, seria a representação da verdade nua que conduz o seu pincel. Courbet procurava pintar quadros que mostrassem a vida real da época, e as cabeças do pintor e da verdade inclinadas, unidas, podem representar uma relação de cumplicidade entre eles.

À esquerda há um menino ajoelhado no chão fazendo um esboço numa folha de papel. Segundo CUMMING, este menino, assim como a criança em frente ao cavalete, representa aquele que não foi acorrentado pela rigidez de uma educação formal: “Simplesmente registra da melhor maneira aquilo que vê, e isso era um dos princípios ventrais do Realismo. Courbet o inclui como um símbolo da liberdade e da espontaneidade, das quais depende o futuro da arte.”        

Courbet lutou pela independência do artista, que nesta obra está no centro da composição. A partir daí, ele assinala um novo horizonte de possibilidades para os artistas, livres de preceitos morais e encorajados a seguir seu próprio caminho, sem contar com qualquer outro pressuposto além do ser fiel a seus próprios princípios – sinalizando o rumo que tomaria a arte moderna no século posterior.

“O estúdio do pintor” é, para CUMMING, um manifesto onde o artista declara suas crenças e opiniões. Nesta obra ele declara sua idéia de que a pintura tem exigências próprias e “escancara” sua negação aos arranjos convencionais. Os historiadores consideram esta a obra mais ambiciosa de Courbet, a sua declaração de independência.

A proposta do Realismo era que a arte deveria adotar como tema a realidade da vida e mostrá-la sem elaboração, idealização ou sentimentalismo. Os temas incluíam camponeses, prostitutas, mendigos e outros aspectos da vida que a burguesia preferia não ver, como os personagens à esquerda da composição.

As figuras reais mostradas na obra influenciaram positivamente o desenvolvimento de Courbet como artista. As únicas desconhecidas pelos historiadores são os namorados à janela e o casal em primeiro plano, que parecem ser ricos colecionadores de arte. A figura sentada atrás da Verdade é reconhecida como o escritor Champfleury, fundador do movimento realista na literatura que apresentou a Courbet as teorias do Realismo. Champfleury não gostou deste quadro e logo rompeu a amizade com o pintor, pois reprovava seu envolvimento na política e suas “tentativas de escandalizar o público”. A figura sentada lendo um livro é Charles Baudelaire, amigo de Courbet. Atrás dele, próxima a um espelho escuro, estaria a namorada do poeta, Jeanne Duval. Esta figura teria sido apagada por Courbet, mas está reaparecendo com o tempo, à medida que a tinta vai se tornando mais fina.  

Nessa obra o artista também mostra a sua apurada técnica, conhecimentos de equilíbrio e unidade numa composição inovadora para a época (tratamento da luz e da sombra, apurado estudo estrutural para unificar um aparentemente acidental agrupamento de pessoas). Percebe-se a vontade do pintor de expressar o real, o que se vê, a imagem vista pelo olho. Suas pinceladas espontâneas criam espécies de marcas do tempo, o sujo, o gasto, o verdadeiro, o vivido (ou vivível). O real.

Courbet pintou grandes temas: a vida, a morte, a natureza e a existência humana, desafiando as correntes predominantes na arte convencional francesa da segunda metade do século XIX. Pintou paisagens campestres e marítimas, onde o romantismo e idealização são substituídos pela representação de uma realidade oriunda da observação direta. Um dos temais mais explorados por Courbet foi os trabalhadores, representados sem nenhuma emoção, mais parecendo parte de uma paisagem do que personagens. O público não entendeu a nova “estética das classes trabalhadoras”.

Segundo JANSON:

“O Realismo de Courbet, então, foi mais uma revolução temática que uma revolução no estilo. Contudo a fúria dos conservadores que o viam como um radical perigoso é compreensível; sua absoluta condenação de todos os assuntos extraídos da religião, mitologia, alegoria e história apenas manifestava o que muitos outros começaram a sentir mas não tinham ousado colocar em palavras.” (p. 329)

Em sua fase realista, Courbet se manteve muito longe do colorismo romântico, aproximando-se do realismo espanhol barroco, com uma profusão de pretos, ocres e marrons, banhados por uma pátina cinza – o que se pode ver em “O estudio do pintor”.

Por volta de 1850, o realismo de Courbet foi dando lugar a uma pintura de formas voluptuosas e conteúdo erótico e a elas seguiu-se uma série de naturezas-mortas e  quadros de caça. Em 1860 pintou uma série de paisagens e marinhas, “Luta de cervos” e “O mar agitado”, que, pelo tratamento da luz e do conjunto, prenunciaram, junto com as obras de Corot, as novas concepções impressionistas.

Após a queda da comuna republicana de Paris, em 1871, da qual foi presidente da comissão de belas-artes, Courbet foi condenado a seis meses de prisão e ao pagamento de uma elevada multa. Em 1873, o artista exilou-se na Suíça, onde morreu em 31 de dezembro de 1877, na cidade de La Tour-de-Peilz.

Assim como muitos historiadores, penso que Courbet foi um artista imprescindível naquele momento histórico. Ele questionou as convenções vigentes no sistema das artes, opondo-se ao classicismo e ao romantismo com propósitos sociais e artísticos. Seu Realismo provocou uma revolução temática e, com isso, uma nova forma de ver a arte – questão que veio à tona nos movimentos artísticos posteriores. “O estúdio do pintor” é uma obra que resume as idéias do artista: Courbet explora ao máximo sua crítica social e suas convicções realistas, colocando o artista no centro da composição, ou ainda, a arte no centro daquele universo.




Partindo do estranho subtítulo “Alegoria Real, Histórica, Moral e Física que resume um período de sete anos da minha vida artística”, penso que “O estúdio do pintor” remete a uma questão que por muito tempo esteve em discussão na arte contemporânea: a natureza da arte, ou, “o que é arte”. Penso que neste trabalho Courbet está de algum modo questionando o “ser ou não ser arte”. Ele  apresenta, no centro da composição, outra pintura sendo feita - uma paisagem, tema tantas vezes rechaçado do campo das artes. Então mesmo levando em conta que para Courbet arte seria a representação da realidade da vida, que para ele havia esta afirmação, penso que, diante de todas aquelas figuras representadas na cena (intelectuais e povo) e diante de todo o público que viesse a se deparar com a obra, Courbet de alguma forma questionou a natureza da arte, ainda que sem intenção. Porque uma alegoria moral requer um pensamento crítico-filosófico (teórico). Porque uma alegoria física implica a importância da matéria (pintura). Porque o resumo de sete anos de uma vida artística pressupõe um pensamento que chegou à afirmação de que arte é a representação da realidade. E porque se a obra “O estúdio do pintor” é arte na medida em que representa a realidade, o que seria aquela paisagem que ele pinta ao lado da verdade? Segundo os historiadores seria um novo tipo de arte, uma paisagem realista que representaria a terra natal do artista. Nesse caso Coubet estaria criticando o establishment da arte. Mas quem sabe, por ironia, não seria a pintura do que ele não vê, uma paisagem imaginada? (já que está fechado em seu ateliê). Se assim fosse, para quem nunca pintou um anjo porque nunca viu um, aquela paisagem poderia não ser arte. Seria apenas pintura. Haveria no centro da composição um jogo de proposições. Imagem que afirma perguntando, que dita e leva além a nossa concepção de objeto artístico - e com isso a concepção da própria de arte.  Algo como “isto não é um cachimbo” (é representação/é pintura/é arte), como bem mais tarde afirmou Magritte.


(Aviso aos estudantes que porventura achem o meu blog e venham estudar este texto: Esse artigo é formado por opiniões muito pessoais. Portanto, muita calma nessa hora).

CUMMING, Robert. Para entender os Grandes Pintores. São Paulo: Ática, 1998. p. 74-75
CUMMING, Robert. Para entender a Arte. São Paulo: Ática, 1998. p. 82-83.
JANSON, H. W. Inicição à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 328-329

Bosch, o estranho (e seu jardim delicioso)

O tríptico conhecido por Jardim das Delícias representa as conseqüências do primeiro pecado: o pecado original gerou no Paraíso um mal que se alastrou pela terra e cujo castigo são os sofrimentos no inferno – no painel esquerdo há o Paraíso; no central, a luxúria dos homens na Terra; e no direito, o inferno e a condenação eterna. Essa obra foi produzida na Holanda, na cidade de S`Hertogenbosch, por Hieronymus Bosch (1450-1516), considerado por alguns historiadores um “marginal da cultura”, esquecido ou incompreendido durante vários séculos, cuja obra só foi vista e estudada a fundo com o advento da psicanálise e do surrealismo. Segundo o padre José de Sigüenza (séc. XVI), em História da Ordem de São Jerônimo: “a diferença, que no meu entender, existe entre as pinturas deste homem e a dos outros é que os demais procuraram pintar o homem tal como ele parece externamente; apenas este se atreveu a pintá-lo como ele é por dentro” (Mestres da Pintura, 1977, p. 05).   

Bosch viveu num período particularmente crítico: o da passagem do feudalismo ao capitalismo comercial, passagem de um modo de vida a outro, que, no campo cultural, foi marcada pelo Renascimento. Entretanto, Bosch não é um representante dos ideais humanistas e da vontade de dominação material e espiritual do mundo; pelo contrário, Bosch representa o limite de uma percepção da realidade em vias de extinção – uma das expressões mais altas e alucinadas do mundo medieval.

Ludwig Von Baldass (Hieronymus Bosch, Viena, 1943), maior estudioso da obra de Bosch, ressalta a individualidade do artista:

“Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o grande solitário da história da arte; é o pintor que, através de sua arte – que está historicamente a altura de sua época – quer mais que os outros. Não aspira a divertir, a instruir ou a educar, mas a criticar e a profetizar. Apresenta à humanidade um espelho de duas faces. Nele, a humanidade vê refletida, por um lado, sua necessidade e sua perversidade; por outro lado, as conseqüências terríveis, no Além, resultantes de seus pecados mortais. Nesse sentido, Bosch continua sendo um filho da Idade Média; mas, pela maneira totalmente independente de exemplos que ele emprega para representar suas concepções dentro das formas artísticas, pertence aos tempos modernos. Dessa forma, encontra-se no limite entre as duas épocas”. (Mestres da Pintura, 1977, p. 06).  

Já segundo Herbert Read: “Embora Bosch vivesse a aurora do Renascimento, ele é essencialmente um artista do Medieval ou do gótico recente. Era um místico religioso ainda não influenciado por qualquer desejo de afirmar sua própria individualidade”. Pelo que se vê, a individualidade de Bosch destaca-se entre os pintores de sua época pela peculiaridade de sua visão de mundo, sem que houvesse nele a típica idéia do Renascimento de afirmar sua própria individualidade através da obra - o que explica o fato de Bosch ter vivido ligado ao medievo em pleno auge da renascença (foi contemporâneo de Leonardo da Vinci: 1452-1519)

O espírito medieval que ainda animava Bosch não era mais visto na produção artística das grandes cidades onde o Renascimento já tinha estabelecido seus princípios. S`Hertogenbosch era uma pequena cidade mercantil e camponesa, o centro de uma região agrícola e ponto de reunião da população rural, de onde Bosch extraiu os elementos para sua obra. Acredita-se que não existia em Bosch um desejo de elaborar um criptograma misterioso, mas sim a intenção de transmitir mensagens transparentes, já que era influenciado pela cultura popular de uma cidade provinciana e camponesa. 

Sua obra produzida foi produzida numa época em que o mundo vivia uma crise espiritual que provocou uma generalizada angústia em relação ao Além (antes neutralizada pela fé inabalável da Idade Média). Perseguia-se e castigava-se a presumida bruxaria com a crueldade que vemos testemunhada com realismo em O Jardim das Delicias, numa linguagem alucinada na qual a animalidade do Diabo se traduz em cara de ratos, garras de aves ou caudas de repteis.

A cultura da época exerceu forte influência sobre o pintor: as gravuras e relatos populares de temas mítico-religiosos marcaram-no mais que as obras dos grandes pintores do período – dentre eles Jan van Eyck e Rogier van der Weyden. 

Na época em que viveu, a idéia sobre a diferença entre o mundo aparente e o mundo oculto era recorrente, mas um século depois de sua morte já era diferente, e talvez por isso a eficácia simbólica de sua obra tenha por um tempo perdido força e passado a ser vista como um fantástico e arbitrário produto, resultado do humor ou capricho de seu autor. O fascínio por alguns de seus contemporâneos, o descrédito posterior e sua atual reavaliação decorrem essencialmente de suas alegorias míticas - cuja interpretação foi tentada a partir de duas perspectivas: a iconográfica e a psicanalítica.

A interpretação iconográfica, representada por Wilhelm Fränger, tenta remeter a simbologia de Bosch à cultura religiosa de sua época, momento de grande inquietação religiosa – e daí a importância da especulação acerca de sua participação em determinadas “seitas”, questão que cerca a análise de sua obra, ora vista a serviço de Igreja, ora vista como herege. É fato comprovado historicamente que Bosch participou ativamente da Confraria de Nossa Senhora, de 1486 até sua morte em 1516, organizando reuniões para preces em comum, distribuindo pães aos pobres, celebrando funerais, ornamentando retábulos e colaborando nos Mistérios (representações teatrais que incluíam balés demoníacos, onde espectros e esqueletos eram as principais personagens). Esta irmandade se tornou um difusor de cultura na sociedade de ‘s Hertogenbosch, pela riqueza e importância de seus membros, na maioria laicos. Nessa época também havia na cidade outro grupo religioso, a dos Irmãos da Vida Comum, fundado no século XIV por um místico que anunciou com antecedência as críticas à vida religiosa que, através de Lutero, eclodiram na Reforma. Não existem provas sobre a relação de Bosch com essa irmandade, mas sabe-se de sua influência sobre a Confraria de Nossa Senhora – a representação, em sua obra, de monges gordos e dedicados aos prazeres carnais indica até onde ele partilhava da crítica à deterioração moral da Igreja. E ainda, outra “seita”, a dos Irmãos e Irmãs do Livre Espírito, também pode ter servido de inspiração ao pintor. Acredita-se que essa irmandade teria sido formada por iluminados místicos dedicados ao nudismo e a orgias sexuais e que tenha sido originada das idéias de J. Floris, místico cristão do Século XII, que dividia a história em três momentos: a Era do Pai ou da Lei, a Era do Filho ou dos Evangelhos e a Era do Espírito (que seria o fim escatológico do processo), sendo que antes de cada uma dessas etapas haveria um período de incubação personificados em Adão, Abraão e São Bento – “Será essa trilogia o fundamento da concepção triádica de O Jardim das Delícias? É possível depreender, a partir disso, que Bosch pertenceu à seita herege?” (Mestres da Pintura, 1977, p. 11). Há estudiosos que vêem nessa doutrina a chave simbólica capaz de elucidar as alegorias de Bosch.

Entretanto, segundo Erwin Panofsky, o prestígio social de Bosch, burguês de ‘s Hertogenbosch e pintor oficial da Confraria de Nossa Senhora, seria incompatível com a adesão a um grupo herege, terrivelmente perseguido e castigado.

A interpretação psicanalítica da obra de Bosch é feita com base nas teses de Sigmund Freud (1856-1939), para o qual a arte seria a sublimação de forças inconscientes censuradas pelo superego, a instância ética da personalidade. A teoria freudiana das sublimações permitiu uma nova interpretação da obra de Bosch, que viria complementar o sentido total, consciente ou inconsciente, da complexa trama simbólica de sua obra. A perspectiva psicanalista atribui conotação sexual a grande parte dos elementos presentes na obra do pintor, e revela em O Jardim das Delícias a presença de símbolos uterinos e fálicos, coitos e etc.

Segundo o crítico Brans, apesar da dificuldade de classificar cronologicamente a obra de Bosch (e de fazer um inventário de sua obra) é possível classificá-la em três períodos, e O Jardim das Delícias estaria incluído no terceiro período. Mas a atividade artística de Bosch é comumente dividida em duas vertentes: a realista e a fantástica (ou simbólica). A primeira inclui quadros de inspiração bíblica, nos quais segue o critério tradicional de divisão do espaço e de ordenação das figuras pela utilização dos esquemas geométricos em diagonal, piramidal e círculo; na segunda, o critério de composição é mais original e rompe com os padrões clássicos- aqui se inclui O Jardim das Delícias, bem como A Carroça de Feno e O Juízo Final.
Essas obras apresentam seqüências estruturadas em serpentina, que, segundo Read: “afastando-se de um primeiro plano minucioso em direção ao espaço infinito do cosmos, são determinadas por uma finalidade precisa, uma perfeita simultaneidade entre visão e pensamento. Não obstante, a complexidade miniaturista desses quadros não é caótica”.   (Mestres da Pintura, 1977, p. 09). 

Sim, a complexidade miniaturista de O Jardim das Delícias mantém uma ordem e uma harmonia surpreendentes, cujas partes intercaladas sugerem continuidade e movimento. A perspectiva é estranha (não havia sido contagiada pelos cânones renascentistas) e parece resultar apenas do tamanho das figuras e de sua disposição no espaço.

A incerteza acerca da vida e Bosch é tão grande quanto à do sentido de sua obra - já foram propostas diversas interpretações de O Jardim das Delícias, havendo um consenso acerca do sentido global da obra: o pecado original gerou no Paraíso um mal que se alastrou pela Terra e cujo castigo é o sofrimento do Inferno (tema recorrente em sua obra).     

Segundo Robert Cumming, (Para Entender a Arte, p. 24):

“Sua visão da humanidade é pessimista e moralizadora: o ser humano carrega uma falha fundamental desde a expulsão de Adão e Eva do Jardim de éden. Na filosofia de Bosch, a salvação é possível, porém com grande dificuldade, e o destino provável da maioria das pessoas é a danação eterna. A morte e o medo da morte são uma realidade sempre presente na sua arte”.

Não sei se de fato a obra é moralizadora ou irônica. A obra mostra as conseqüências do pecado, a trajetória do homem que parte do Paraíso, seu lar antes de sua queda, e passa pelos pecados terrenos até chegar ao inferno. Se Bosch representa, assim, a condenação do homem em razão de sua vida pecadora na Terra ou se faz disso um palco para reflexão, dotado de bom-humor e celebração, não se pode afirmar. 

Para CUMMING (P. 25):

“O painel central é uma dissertação sobre a luxúria em suas muitas formas. Para a mente medieval, o ato sexual era uma prova da perda do estado de graça pelo homem, assim, O jardim das delícias terrenas foi colocado entre o Jardim do Éden, onde o primeiro pedaço foi cometido, e o inferno, onde todos os pecados são punidos”.

No painel central de O Jardim das Delícias vemos grupos de homens e mulheres, todos nus, que se esbaldam na luxúria, cegos pelo desejo como animais (seres primitivos e inferiores). “À primeira vista as cenas parecem inocentes, mas os diferentes símbolos sexuais – frutas, peixes, esferas, etc. – logo modificam essa impressão. Tolnay comenta: ‘A intenção fundamental do pintor é tornar manifestas as conseqüências que derivam do prazer carnal e o caráter efêmero deste: os aloés, plantas suculentas, ferem os corpos nus, o coral e as conchas dos moluscos os aprisionam. No pequeno castelo das mulheres adúlteras, cujas paredes de cor alaranjada são atenuadas por uma cristalina transparência, dormem, rodeados de cornos, os esposos ofendidos. A esfera de cristal, onde um casal se acaricia, e o sino do mesmo material, que cobre pela metade um trio pecaminoso, vêm construir uma espécie de ilustração do ditado de que o prazer é frágil como o vidro’” (Mestres da Pintura, p.21). 

A sensualidade está em toda a cena, as formas esféricas ou ovóides, muitas delas fálicas, em vermelho ou num rosa alaranjado, dão a idéia de carne, pele, corpo. O caráter sensual também está no azul das águas, onde homens e mulheres banham-se sem culpa, divertindo-se, movidos pelo desejo, bem como nas frutas vermelhas, enormes, que representavam na época os prazeres da carne: “O ‘pecado original’ da humanidade foi comer o fruto proibido. Na linguagem medieval, colher frutos significava fazer sexo”, (CUMMING, p. 25). Os homens aparecem em poses sensuais e em muitas vezes bizarras, seus corpos são pálidos, sinuosos e alongados, e em todas as figuras prevalecem as formas arredondadas.

“Na Fonte da Juventude, banham-se negras exóticas e jovens loiras. À sua volta giram cavaleiros montados em todo o tipo de animais, reais e fantásticos, mais a cima, no Tanque da Luxúria, ergue-se a Fonte do adultérios, uma estrutura de ferro, ornada com os símbolos da heresia (cornos e meias-luas de mármore ou carne rosa). Ao redor do tanque, os quatro Castelos da Vaidade estão pintados com um traço tênue que ressalta o seu caráter efêmero; e, dali, personagens de todo o tipo tentam assaltar o céu”. (Mestres da Pintura, p. 21). 

Embora possa haver uma conotação moralizadora nessa obra, no painel central percebo certa simpatia do pintor em relação à cena: pela alegria, pelo humor explícito e pelo “algo de” doce e ingênuo na forma como ele nos mostra o pecado da luxúria - mesmo nas imagens que chocam pela estranheza e crueldade, como no homem com a cabeça submersa no lago, que segura seus genitais com uma framboesa (podre?) entre suas pernas. Para meu olhar contemporâneo, soa como uma “crueldade delicada” (pelas formas arredondadas, cores alegres e doces), e talvez por isso as imagens me sejam antes bizarras que violentas. Segundo COPPLESTONE (p. 56): “O curioso efeito geral desta orgia pastoral é de pacífica inocência e de uma delícia verdadeira”. Sim, a paisagem apresentada é por mim vista como uma espécie de “parque de diversões”, habitado por estranhos animais, pássaros gigantes, curiosas formas vegetais, frutas vermelhas e conchas enormes, onde homens e mulheres (pequenos em relação aos elementos, o que pode ser crítica à pequenez no homem) se divertem com suas acrobacias sexuais.     

Fraenger, estudioso da obra de Bosch, entende que o pintor não utilizaria cores e formas tão encantadoras para um objeto que queria representar como condenável - o que vem a sustentar minha opinião sobre a predominância da ironia em relação à moralização. Não obstante haja uma crítica, não podemos saber ao certo até que ponto Bosch estaria condenando esses homens. As imagens seduzem, atraem por sua beleza formal e pela estranheza, pela “bizarrice” das cenas - e acabamos deixando em segundo plano a condenação moral que para tantos estudiosos seria o cerne da obra de Bosch.

O painel central de O Jardim das Delícias reúne os temas eróticos da Idade Média e pode sim ser visto como um espelho que reflete a tolice humana: pessoas despreocupadamente se dedicando ao prazer, ao pecado da luxúria – mas isso pode significar mais uma alegoria crítica que um julgamento moral. Segundo BOSING:

“[...] é significativo o fato de no jardim do painel central não se verem crianças e de os seus habitantes não se esforçarem para subjugar a Terra, antes pelo contrário, parece que estão prestes a serem esmagados por aves e frutos gigantes. Assim o jardim não mostra o cumprimento do mandamento divino por parte de Adão e Eva, mas sim a sua perversão.” (p. 57 ).

No lago do fundo, homens e mulheres banham-se juntos, mas, no pequeno lago do meio, estão separados uns dos outros: dentro do lago há mulheres nadando e se divertindo enquanto os homens montam estranhos animais (fabulosos e híbridos) ao redor do lago. Para os moralistas medievais, era sempre a mulher que seduzia o homem para o pecado, seguindo o exemplo de Eva. Esse poder “maligno” da mulher foi diversas vezes representado na arte. Embora aqui também as mulheres estejam saindo do lago em direção aos homens, na obra de Bosch a ênfase nas apetências baixas e primitivas está mais evidente nos homens, que montam estranhos animais – o que servia como metáfora para o ato sexual.

Segundo Trewin Copplestone (Vida Obra de Hieronymus Bosch, p. 58):

“Este é o início da luxúria, o início da Queda, e Bosch menciona a natureza da atração sexual. [...] os homens estão todos alertas e conscientes de si mesmos. No alto uma mulher olha para fora do lago com a maçã, símbolo da tentadora Eva e Fruto proibido, equilibrada sobre a cabeça. Em toda a cena, outras mulheres preparam-se para sair do lago em direção aos homens, em vez de estes irem a elas. Era a crença medieval de que as mulheres eram os receptáculos da luxúria e a causa original da queda dos homens. Esta é a declaração mais positiva de Bosch sobre o prazer e as dores da atração sexual”.

Algumas cenas chamam a atenção. Uma dela é a do casal dentro de uma bolha. Parecem estar imersos no seu “mundinho” de prazer, distantes do mundo real, como até hoje acontece com casais desavisados. Outra é a da figura humana em azul, com o corpo mais realista que as demais e que parece sofrer mais que as demais, dentre os homens cercados por pássaros gigantes. Seria esse homem azul mais lúcido que seus companheiros? Mais humano no sentido evolutivo?  E ainda a dos homens e mulheres situados dentro de frutas exóticas, algumas poderes ou em decomposição, o que pode ser uma alusão à efemeridade do prazer carnal.

Gauffreau Sévy fez um catálogo sumário da simbologia de O Jardim das Delícias (Mestres da Pintura, p. 14): o tema dos peixes, muito freqüente na obra de Bosch, simbolizaria o pecado; o íbis, que vive do peixe morto, estaria associado à idéia do Diabo (segundo alguns historiadores o peixe simboliza a lascívia). Bosch também teria representado o Salvador pelas imagens do unicórnio, do cervo e do leão; seria possível também ver no pelicano o símbolo da redenção, assim como nas conchas e nas pérolas; os cardos, desproporcionalmente grandes, seriam a inconsciência das personagens; e o rato simbolizaria as falsidades e as mentiras que afastam o homem da fé e da idéia de Deus – no canto inferior esquerdo vemos um homem, fascinado e atemorizado, contemplando um rato no fundo de um tubo de vidro.

Segundo CUMMING (P. 25), no canto inferior direito há as figuras de Adão e Eva, sendo ele, Adão, a única pessoa vestida no paraíso, sentando com Eva na boca de uma caverna (segundo escritos apócrifos eles se refugiaram numa caverna depois de expulsos do Jardim de Éden). 

Acredita-se ainda que Bosch teria utilizava o repertório do gnosticismo alquimista, pois aparecem diversos símbolos típicos da alquimia em seus quadros: o ovo (símbolo do conhecimento), a árvore (representação da ascensão) e a sexualização dos elementos.

Também a representação dos Mistérios poderia ter influenciado a criação de Bosch, já que no século XV houve uma expansão notável dessas representações teatrais, cuja coreografia e cenografia tornaram-se cada vez mais ricas e complexas, e já que foram subvencionadas pela Confraria de Nossa Senhora, da qual o pintor fazia parte. Segundo alguns historiadores, algumas de suas obras podem ser transcrições de encenações dos Mistérios e, em outras, podem ser vistos vestígios de cenografias - de fato, pela composição de O Jardim das Delícias, podemos ver as personagens como se estivessem realizando uma coreografia, num cenário construído.      

O universo apresentado por Bosch em O Jardim das Delícias é surpreendente e confirma a peculiaridade da sua visão de mundo tão apontada pelos historiadores – visão esta que parece vir à tona, de forma inconsciente, nesse trabalho. Não é a toa que os surrealistas têm sua obra como referência! O fato de sua obra ter sido produzida na segunda metade do século XV, no auge do Renascimento mas fora dos cânones renascentistas, a torna uma obra diferenciada: Bosch continuava apegado às questões do medievo e produzindo imagens surreais, numa cidade provinciana povoada por religiosos conservadores. Foi um artista conservador, pelo apego ao medievo, mas moderno pela coragem de pintar o homem por dentro. Foi irônico e/ou moralista. Foi polêmico. Sua poética torna inevitável tentar imaginar a reação das pessoas da época ao se depararem com seus quadros - tarefa quase tão impossível quanto entender a obra (e as intenções) desse artista tão singular.      


BOSING, Walter. Hieronymus Bosch. Londres: Taschen, 1991. p. 51-57.
COPPLESTONE, Trewin. Vida e Obra de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 52-61.
Mestres da Pintura. São Paulo: Editora Abril, 1977. p. 05-19. 
CUMMING, Robert. Para Entender a Arte. São Paulo: Ática, 1998. p. 24-25.

o padeiro chamado Neo

A pintura mural conhecida como “O padeiro e sua mulher” (ou Neo e sua mulher, século I, Roma) foi descoberta em Pompéia, cidade soterrada pela erupção do vulcão Vesúvio no ano de 79 d.C. É um dos primeiros retratos da História da Arte em que não há um intuito fúnebre ou religioso.

Na época, o mais comum era o retrato escultural de grandes personalidades, ou aqueles com finalidade fúnebre ou religiosa.

A simples intenção de retratar a existência de personagens comuns era algo raro nessa época em que a pintura romana estava estreitamente ligada à arquitetura e sua finalidade era quase exclusivamente decorativa. Esse retrato me “fala” também de uma tendência à valorização do homem, antes visto como tão insignificante diante de Deus.

Embora com motivações diferentes, e a meu ver até antagônicas, essa pintura traz muitas semelhanças com os retratos de Fayum (oásis situado ao sul do Cairo), retratos mortuários pintados sobre tela de linho ou madeira e colocados sobre os sarcófagos. Remontam à época da ocupação romana, nos primeiros séculos da nossa era. A Berger Foundation considera estes os primeiros retratos de personagens pintados na História da Arte, bem como o relato de um encontro histórico entre duas culturas: a romana e a egípcia.

As semelhanças a que me refiro estão no naturalismo e na expressividade dos retratados. Segundo GOMBRICH (p. 124): “Esses retratos, que certamente eram executados por humildes artífices a um baixo preço, ainda hoje nos espantam por seu vigor e realismo. Poucas obras de arte antigas se conservam tão ‘modernas’ quanto essas”.

E o elemento que os diferencia, para mim, também os aproxima: enquanto na arte funerária a finalidade era divina, de exprimir a serenidade de um personagem em paz diante da morte, o que lhes propiciaria a vida eterna, “O padeiro e sua mulher” com finalidade decorativa, doméstica e de registro dos donos da casa, também os ETERNIZA na parede daquele lar. Nos dois casos, a identificação, seja no túmulo ou na parede da casa, perpetua a existência das personalidades retratadas.

Curioso é que, assim como o retrato do padeiro, os de Fayum retratam personagens em vida jovem e saudável, o que indica terem sido realizados em vida e guardados pelos retratados até o momento de sua morte, quando eram entregues a embalsamadores. Ou seja, o padeiro, sua mulher e os mortos de Fayum estiveram diante do pintor, possivelmente palpitando sobre o resultado da obra, possivelmente desejando fidelidade à sua aparência e beleza no resultado.

As semelhanças entre os retratos mortuários e a obra romana aparecem também no aspecto estilístico, na ênfase nos traços fisionômicos e no fundo neutro que concentra a atenção nos retratados. Ambos exploram a expressividade do olhar, que mira o espectador atraindo-o para si, buscam ser fiel às feições, mostram o vestuário, as jóias, os adornos e algum elemento alusivo ao ofício dos retratados. Os primeiros, no intuito de alcançarem a vida após a morte, o segundo, no intuito de marcar sua existência.

Os retratos de Fayum são retratos de romanos que escolheram o modo egípcio de abordar a eternidade, fazendo-se mumificar com bandagens e sepultados em sarcófagos, com suas imagens colocadas sobre a região do rosto. Substituem os retratos de Osíris, empregados para fazer alusão à eternidade pretendida, crença presente na cultura Egípcia durante a antiguidade. Alguns retratos de Fayum mostram figuras estilizadas, cores chapadas e pouco volume - ilustrações “ingênuas” que me remetem à arte naïf, pela simplicidade do desenho e pelo uso de padrões e cores para dar o efeito de perspectiva. Mas alguns retratos mortuários têm uma sofisticação estética surpreendente para a época: o uso de luz e sombra para a busca do efeito de volume e com isso dar fidelidade à expressão fisionômica do retratado. É o uso da técnica para alcançar a representação do real. 

A pintura romana sofreu forte influência da arte etrusca popular e da arte greco-helenística, a primeira voltada para a expressão da realidade vivida e a segunda voltada para a expressão de um ideal de beleza - isso somado ao naturalismo e ao espírito sério e trágico da arte helênica.

Na antigüidade, a pintura romana esteve fortemente ligada à arquitetura, servia para completá-la e enriquecê-la e tinha finalidade quase que exclusivamente decorativa. No século II a.C., época da República, as famílias patrícias costumavam mandar que se fizessem imitações da decoração de templos e palácios nas suas casas, chegando a simular, nas paredes, portas entreabertas que davam acesso a aposentos inexistentes. Além dos ornamentos palacianos, os temas favoritos escolhidos por essa arquitetura fictícia eram quase sempre cenas da mitologia grega ou paisagens de cidades e praças públicas tipicamente romanas. Apenas na metade do Império esse costume deixou de ser moda, e as grandes pinturas murais acabaram tendo suas dimensões reduzidas, transformando-se em pequenas imagens decorativas.

O mosaico também decorava os interiores dos lares abastados e dos edifícios públicos, cujos temas eram cenas mitológicas, paisagens rurais ou marinhas (com sua fauna e flora) e também retratos (pessoal ou familiar). Em termos de retratos, a grande inovação foi o retrato escultural, muito presente na arte romana da época. Roma foi ornamentada pelas esculturas gregas até surgir o retrato histórico, quando as idealizações de heróis foram substituídas por retratos esculturais de grandes personalidades que mostravam os traços particulares da pessoa.

A tradição do retrato começou na antiguidade, mas esteve durante muito tempo restrito a uma pequena parcela da sociedade.  Há alguns exemplos no Antigo Egito, onde apenas o faraó e sua família tinham o privilégio de serem retratados, na Grécia, onde as moedas eram cunhadas com o retrato dos seus soberanos, e em Roma, onde principalmente utilizavam o retrato para cultuar os antepassados (“O padeiro e sua mulher” é exceção).

O retrato popular começou a aparecer com mais força a partir do século XV, até o surgimento da fotografia no século XIX.

A idéia do retrato como imagem fiel à aparência do retratado esteve presente apenas em determinados momentos históricos, como no antigo Egito, nas dinastias IV e XVIII do Antigo Império e no Império Novo. Na Grécia antiga, somente no período helênico os retratos incluíram aspectos particulares dos retratados. Durante a Idade Média o naturalismo foi interrompido e retornou a partir do Gótico, quando, com a revalorização da natureza, do homem e da razão, o retrato desenvolveu-se como gênero autônomo, destinado aos nobres e burgueses.

No Renascimento, com o naturalismo e o humanismo em alta, o retrato tornou-se um dos principais gêneros da arte, com finalidades particulares e públicas, tornando-se um meio para os burgueses consolidarem seu prestigio e seu poder social. No Barroco o retrato naturalista voltou com força total, especialmente os retratos de corpo inteiro.

No Impressionismo e na Arte Moderna os artistas negaram os padrões tradicionais da pintura, o naturalismo deixou de ser unânime e as novas abordagens estéticas entraram em choque com as expectativas da sociedade, tornando escassas as encomendas de pintura de retratos pela burguesia, tão comuns até o Romantismo. A fotografia passou a atender à função prática do retrato e permanece assim até hoje.

Enfim, “O padeiro e sua mulher”, retrato pintado no primeiro século da nossa era, sem fins religiosos ou fúnebres, é um exemplar do nascimento do retrato tal como o conhecemos hoje, essencialmente destinado a “representar” a pessoal como ela é, fiel à sua aparência, à sua singularidade, deixando-a para a memória. E isso me leva a pensar em como, depois de cerca de 2 mil anos de história, esta obra, dotada de um realismo e de uma expressividade incomuns, pode parecer tão atual.

Fazendo um contraponto com os retratos mortuários de Fayum, de intuito especificamente fúnebre, penso sobre o casal retratado em “O Padeiro e sua mulher”. Vejo-os como pessoas “modernas” para a época, porque foram pessoas comuns que utilizaram o retrato na busca de identidade e memória, com a vontade de ter um pouco de si gravado na parede da casa, eternizando-se (como desejavam os retratados de Fayum) através da decoração. Um pouco de vaidade, a intenção de marcar presença, um tanto de desejo de sentir-se especial e eterno. Funcionou. Hoje, em pleno século XXI, cá estou, escrevendo sobre eles, intrigada com essas personalidades tão antigas e tão iguais a nós contemporâneos, e me perguntando se o nome do padeiro era mesmo Neo. Ou se Neo realmente foi padeiro.         


BECKETT, Wendy. História da Pintura. São Paulo: Editora Ática, 1997. p. 22.
GOMBRICH, E.H. História da Arte. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1999. p. 117-131. 

abertura

começo aqui um segundo blog. este abrigará meus escritos sobre arte. textos acadêmicos e não acadêmicos. leituras de imagens. referências bibliográficas. fichas de leitura. estudos. escritos sobre arte que não couberam no inços e aquilos [http://incoseaquilos.blogspot.com/]- blog direcionado aos meus escritos de artista, ficções, exercícios de estilo, pensamentos soltos, textos inclassificáveis.


tem no sótão mais que a criação de textos. tem no sótão a vontade de compartilhar idéias e informações.

por isso disponibilizo aqui alguns estudos que acredito interessar a algumas pessoas. especialmente aos colegas artistas e estudantes de arte.


a ordem de postagem será mais ou menos a ordem em que os textos foram criados. alguns bem primários, do incício da minha aprendizagem teórica. outros excessivamente detalhados e talvez chatos. mas eu os publico mesmo assim. porque penso que mais inútil que um texto sem novidade é um texto que ninguém leu.